Quem sou eu

Minha foto
Belém, Pará, Brazil
Sou um simples pescador/ pesco sonhos nos mares da alma/ sonhos esquizofrênicos e psicodélicos/ transmutados em realidades desejadas/ à minha imagem e semelhança

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A linguagem e o texto literário

Escrevi um trabalho sobre a linguagem e o texto literário na disciplina de nome homônimo da Especialização em Língua Portuguesa da UFPa. A versão que eu postei está sem revisão. Tirei excelente no trabalho e achei que outras pessoas poderiam gostar de dar uma olhadinha.

Contemporaneamente, vê-se a linguagem sofrer rudes golpes naquilo que lhe é peculiar – a expressão – os quais a estão enfraquecendo em uma de suas propriedades mais singulares qual seja: a capacidade de distanciamento do homem sobre o mundo e, por conseguinte, o seu retorno ao mundo para transformá-lo; e se o homem não tem oportunidade de desenvolver e enriquecer a linguagem, torna-se incapaz não só de compreender o mundo, mas o que é muito pior, se a palavra (suporte da linguagem) que distingue o homem de todos os seres vivos, encontra-se enfraquecida na sua possibilidade de expressão, é o próprio homem que se desumaniza. Como fazer valer, então, a máxima de Guy de Maupassant: “Os grandes artistas são aqueles que fazem a humanidade aceitar sua ‘ilusão particular’”?

Será que ainda existe essa ilusão particular em um contexto em que as palavras, os pensamentos, as ideologias, a cultura que o indivíduo usa, pensa serem de sua autoria e fazerem parte de suas singularidades, não passam de mais um discurso de outrem, um discurso no qual ele é apenas porta-voz e aí dele se tentar sair de tal discurso para emitir o seu próprio discurso!!!

Com efeito, o texto literário é um dos suportes de acontecimento e de repetição diferente na estrutura descrita por Derrida, pois nessa estrutura, o momento em que se emoldura, recorta a linguagem, esse recorte não é a visão da realidade pura e, sim repetição com diferença de um pedacinho do universo heterogêneo, pois o signo trai a intenção de quem recorta, de maneira que, dependendo do nível de força com que os tentáculos do discurso dominador abraçam o enunciador, seu recorte pode ou não ter uma moldura que, embora repita e não traduza a realidade, seja “livre”.

Para confirmar que ainda existem pessoas fazendo arte, eis que surge uma banda islandesa chamada Sigur Rós a qual se utiliza da linguagem musical e da imagética de seus clips para subverter os tabus cristalizados no inconsciente coletivo. A banda mantém a riqueza da linguagem, além de mostrar ao mundo a sua ilusão particular de temas cotidianos, faz um recorte dessa heterogeneidade e dá uma moldura singular a grandes tabus por meio da linguagem musical, como síndrome de dawn, velhice, homossexualismo etc, sem contudo parecer clichê e levantar bandeira de qualquer movimento. Sigur Rós consegue fazer o que Barthes chama de trapaça salutar:

(…) o signo é seguidor, gregário; em cada signo dorme este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua(…)mas a nós(…), só resta trapacear com a língua(…) Essa trapaça salutar (…) que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem eu a chamo: literatura.

(Barthes, p. 16, 1978)

Eles conseguem trapacear de forma tão brilhante quando cantam em uma língua chamada hopelandish, língua criada pelo próprio vocalista, a qual não possui sintaxe, morfologia ou fonologia. Quando indagado acerca de como as pessoas fariam para compreender a língua, ele responde que a semântica se dá a partir da vontade das pessoas, ou seja, a imagem que elas quiserem atribuir aos signos será a imagem verdadeira. Dessa forma, a chave que está sempre em modificação é a mesma que te abre o caminho, ou os caminhos para entender as abstrações. Além disso, a banda consegue preservar aquilo que Ítalo Calvino chamou de leveza:

“(…)Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar (…)leveza(…)Cada vez que o reino humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo(…)eu devia voar para outro espaço(…)Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle…

(Calvino, pp. 11 e 19, 2002)

O estilo de Sigur Rós veio para contradizer o sentido pretensamente verdadeiro, uma verdade única e definitiva, sem fazer isso abertamente, eles fazem um ataque a um discurso já estabelecido pela tradição, e esse estilo é capaz de ver e dizer uma outra história, uma outra cultura, uma outra sociedade, demonstrando uma boa capacidade de ver diferente. Desta feita, eles vêm também para nos mostrar a leveza de suas melodias, de suas letras, de sua poesia.

Dentre as várias canções do álbum Agaetis Byrjun a que se analisará é uma das mais contundentes, brilhantes, profundas, a qual não pode estar desatrelada das imagens que compõem o clip, que soa a uma estranha e cativante mistura de vários ritmos e não soam a nada disso.

De quando em quando o vocalista senta-se no chão, de guitarra no colo e vira as costas ao público, como se estivesse sendo consumindo por uma força estranha e, com um arco de violoncelo na mão direita saca sons mágicos acompanhado de uma voz distorcida do interior da guitarra. No baixo, Georg Holm usa uma baqueta para marcar o ritmo louco e alucinante em espiral . A bateria de Orril fascina ora por detrás das teclas, ora na segunda guitarra ora na flauta, como em Olsen Olsen. A acompanhá-los têm quatro garotas, um quarteto de cordas, três violinos e um violoncelo, primeiro estranha-se, depois entranha-se, as canções que falam de banalidades, paisagens e quotidiano, vibrantes e cativantes e, para quem não entende islandês ou hopelandish, não faz falta perceber as letras, apenas a melodia importa, algo que sugere o nostálgia, a depressão, o angustiante. Como se ao fechar os olhos estivéssemos ouvindo anjos cantando. A música do Sigur Rós quer-se para adormecer e acordar e faz desejar ser possível agarrar tudo o que deles emana com uma mão e guardá-lo num bolso bem junto de nós. Para sempre. Eterno. Soberbo. Belo.

Um dia perfeito para bombardeamentos
Deslizo para a frente
através da minha mente,
penso metade do tempo
ao contrário.
Vejo-me a cantar
A canção que escrevemos juntos.
Tivemos um sonho,
tivemos tudo.
Fomos até ao fim do mundo,
fomos à procura.
Subimos arranha-céus
que depois explodiram,
já não havia paz.
Perdi o balanço e caí
para trás
Deslizo para a frente
através da minha mente,
volto sempre ao mesmo sítio.
Silêncio
sem resposta.
A melhor coisa que Deus criou
é haver todos os dias um novo dia

Vidrar vel til loftarasa

ég læt mig líða áfram
í gegnum hausinn
hugsa hálfa leið
afturábak
sé sjálfan mig syngja fagnaðarerindið
sem við sömdum saman
við áttum okkur draum
áttum allt
við riðum heimsendi
við riðum leitandi
klifruðum skýjakljúfa
sem síðar sprungu upp
friðurinn úti
ég lek jafnvægi
dett niður
alger þögn
ekkert svar
en það besta sem guð hefur skapað
er nýr dagur
http://letras.terra.com.br/sigur-ros/33969/

http://letras.terra.com.br/sigur-ros/392293/

A letra da música acima, aliada ao clip, torna-se bem mais acessível. O clip fala de uma típica história de dois adolescentes homossexuais que vivem as vicissitudes de sua condição em uma sociedade preconceituosa. O que chama a atenção no clip é a simbologia de dois bonecos. Um dos adolecentes leva em um carrinho dois bonecos, quando o seu pai percebe isso, corre até o menino, arranca os bonecos de sua mão e os lança para o rio. A imagem dos bonecos voando em câmera lenta é a mais perfeita imagem de leveza que Calvino sugere em sua obra. A figura dos bonecos só retorna no final do clip, quando em um jogo de futebol, onde estão presentes as mais pétreas instiuições como a igreja, a famíla, a sociedade as quais representam todo o pesadume presente na história, e quando os dois meninos partivipam de um lance e fazem o gol, jogam-se no chão e se beijam provocando a reação lugar-comum e pesada das instiuições presentes para esses casos, o meninos, então, são separados e um deles olha para o céu e lembra da cena dos dois bonecos sendo lançados uma sena serena e leve. Essa metáfora traduz o que a sociedade faz com os homessexuais, extirpa-os e os lança para longe como se eles fossem um peso, mas a serenidade como eles voam revelam a leveza de suas atitudes, pois o pesadume está mesmo é nas estruturas pesadas das instituições.

Nesse ponto começam a surgir as dúvidas: talvez Sigur Rós não queira falar de suas ilusões particulares, talvez queira apenas fazer música, divertir-se ou subverter a ordem dos discursos presentes.O fato é que eles foram procurados por gravadoras americanas que queriam que eles assinassem contratos milionários e passassem a cantar em inglês. Um típico exemplo de um discurso de poder por meio da língua. Achar que uma coisa só é boa quando é feita dentro dos padrões que as legitimem , a língua é uma dessas formas de legitimação, e Sigur Rós está fazendo algo interessante, todavia está fadado ao esquecimento por estar utilizando uma língua menor.

Pode-se dizer que a terceira força da literatura, sua força propriamente semiótica, consiste, em jogar com os signos em vez de destruí-los, em coloca-los numa maquinaria de linguagem cujos breques e travas de segurança arrebentaram, em suma, em instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas.

(Barthes, pp. 28-29, 1978)

Com efeito, Sigur Rós quer apenas fazer a sua música, não quer sua expressão tolhida, submetida ao jugo de uma tradição ou ao jugo de uma língua maior, sob pena de sua arte ser castrada de sua singularidade ser mediocrizada, um verdadeiro ultraje à criação literária, musical etc. A força presente em seu trabalho não pode ser enfraquecido apenas porque o mercado quer ganhar dinheiro e as pessoas “querem” ouvir música em inglês.

Sigur Rós apenas fornece o remédio, já que o artefato discursivo presente em toda manifestação da linguagem é um mecanismo de dominação e libertação, como a pharmacon de Aristóteles, o remédio de Sigur Rós serve tanto para curar, quanto para envenenar; serve para o bem e para o mal; serve para libertar e para aprisionar, basta que para que isso o sujeito que busca o remédio esteja disposta a fazer a sua escolha. Essa escolha tem sempre uma vertente mítica e libertadora, e a despeito de uma tradição dominadora que quer estragar esse remédio com o seu discurso, Sigur Rós segue firme em seu discurso louco e inserido em uma tradição menor.

Sigur Rós, contudo emite o seu discurso periférico, que de fato não se opõem à tradição, mas se prende a alguma tradição menor embora proponha-se como autêntico, na voz de seus enunciadores (pois em geral é assim que eles se propõem), em verdade enuncia-se a partir de uma tradição menor. É desvendar essa tradição menor, é a chave do tamanho para se alcançar a obra desses islandeses, uma obra que pode parecer fora do lugar comum, sem os clichês desse poder gregário que quer utilizar e tornar a expressão, a linguagem servis.

Talvez em inglês a sonoridade, as rimas, a semântica não fosse suficientemente produtiva ou talvez Sigur Rós queira apenas emitir o seu discurso de loucura como fala Foucault:

(…)o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que a sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato.

(Foucault,pp.10-11,1970)

Sigur Rós não tem medo de emitir o seu discurso de loucura. Eles querem que as pessoas ouçam em hopelandish um discurso metafórico, leve o que está no lugar periférico, em uma língua menor, que nega uma tradição. Fato que nos provoca a reflexão: quem é mais verdadeiro, Dom Quixote ou Pancho Pança. O discurso do louco que provoca risos, mas que faz os signos se movimentarem; ou um discurso gregário, castrado, massificado?.

A fala de Guy de Maupassant mostra que a literatura é um processo de construção da realidade, e essa realidade selecionada pelo artista, entre as várias experiências humanas, revela aquela que para ele expressa uma visão pessoal do mundo.

Se é que há as duas formas de o homem sintonizar-se com o mundo: uma dentro e outra fora de si, em cuja de dentro muito pequena se considerarmos as dimensões do corpo às vezes entra em choque com a de fora, incomensurável se observarmos o país, o mundo, o sistema solar, a galáxia. Evidentemente que a de dentro, embora seja limitada pelo corpo, é tão infinita quanto a de fora, pois é a mente que transcende o subsolo da alma. Ao passo que a de fora, apesar de ser muito grande, é restrita pelo meio que a permeia. Já dizia Blaise Pascal: “toda a nossa dignidade reside no pensamento”. É através dele que devemos nos elevar, e não através do tempo e do espaço que não podemos preencher. Por isso Sigur Rós escolhe ser louco, rejeita o que se arrasta na linguagem criando uma nova língua, inclusive, recorta o mundo heterogêneo a partir de suas experiências, não se dobra diante do discurso do poder, tudo isso para salvar a leveza, algo que somente a literatura nos pode legar.

Referências Bibliográficas:

BARTHES, Roland.Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do College de France.São Paulo: Editora Cultrix. 1978.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o novo milênio. São Paulo: Companhia das Letras. 2002.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva. 1971.

FOUCAULT, Michel. A ordem dos discursos: aula inaugural do College de France. São Paulo: Edições Loyola. 1996.

SANTAELLA, Lúcia. Teoria geral dos signos: semiose e autogeração. São Paulo: Ática. 1995.